Superendividamento é uma realidade cada vez mais presente e perigosa no Brasil.
A situação financeira de muitos brasileiros já era preocupante antes de a pandemia assolar o país, mas a tendência é que as coisas fiquem ainda mais desafiadoras a partir de agora. A realidade do superendividamento é cada vez mais presente na vida de muitos brasileiros e precisamos falar sobre isso.
De acordo com o Relatório de Endividamento de Risco no Brasil, publicado pelo Banco Central, há um contingente grande de brasileiros com dívidas praticamente impagáveis e que, inadimplentes ou não, estão comprometendo seu presente e futuro financeiro de forma irremediável.
Segundo informações do relatório publicado pelo BC, a população com carteira de crédito ativa atingiu 85 milhões de tomadores em dezembro de 2019. Desse total, 4,6 milhões de tomadores estavam em situação de endividamento de risco (5,4%). Estas mais de 4 milhões de pessoas simplesmente devem mais do que podem pagar.
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O que é superendividamento?
Segundo a definição dada pelo BC, o superendividamento é “o resultado de um processo no qual indivíduos e famílias se encontram em dificuldade de pagar suas dívidas a ponto de afetar de maneira relevante e duradoura seu padrão de vida”.
O endividamento de risco, alvo do relatório, é um passo em potencial para o superendividamento. O relatório fala sobre isso de forma clara: “Há possivelmente uma propensão a que os tomadores aqui identificados como endividados de risco se encontrem, simultaneamente, em situação de superendividamento ou que, eventualmente, possam chegar a esse estágio se ações preventivas e de correção não forem tomadas”.
A população mais vulnerável a sofrer os perigos do superendividamento costuma ser a de idade acima de 54 anos, mas não necessariamente de renda mais baixa. Estas pessoas têm um histórico maior com bancos e, assim, mais acesso a empréstimos, limites e produtos financeiros, o que parece bom, mas pode ser um complicador.
Você talvez esteja pensando que apenas as pessoas com baixo nível de renda passam por isso, mas não é o que acontece. Os dados do relatório mostram que a situação acomete mais quem está na faixa entre R$ 2 mil e R$ 10 mil mensais. A diferença é que quem possui renda mais elevada costuma acessar mais a justiça como forma de lidar com a situação.
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Superendividamento: consequência de um ciclo vicioso
O começo da história de um superendividado geralmente passa pelo cartão de crédito, cheque especial ou crédito direto (empréstimo). São linhas de crédito muito fáceis de usar, mas com juros muito elevados, uma combinação perigosa para quem não tem educação financeira.
A situação se agrava quando muita gente parece encontrar uma solução, trocando as dívidas mais caras por outras mais baratas. O uso do crédito consignado, por exemplo, é recomendado para ser uma alternativa aos juros altos de outras modalidades quando da troca de dívida, mas por que será que isso não resolve o problema? Simples: porque as pessoas voltam a se endividar.
O consignado tem desconto direto em Folha e isso acaba diminuindo a renda disponível para o dia a dia, sem que a renda total saia da cabeça. O salário mental é o de sempre, digamos R$ 2.000,00, mas a renda disponível líquida por mês é muito abaixo disso por conta dos descontos (inclusive do consignado).
Com menos renda, mas com os mesmos desejos e notando a ansiedade subir, o consumidor acaba exagerando e volta a se endividar no cartão de crédito, cheque especial e recorre a empréstimos, financiamentos, uma espécie de “bola de neve” que leva ao endividamento de risco e, depois, ao superendividamento.
O dinheiro do trabalho quase que não fica como superendividado, que vê o salário sumir por conta do desconto do consignado, cobertura do limite do cheque especial, pagamento de parcelas e por aí vai. O comportamento inadequado diante das próprias finanças pode ser agravado em uma emergência como a atual. A angústia se pronuncia.
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Renegociar dívidas é parte da solução
Segundo informações oficiais do Banco Central relacionadas a maio de 2020, a renegociação de mais de uma modalidade de crédito em conjunto saltou 40,6% no contexto anual. Se consideradas as novas concessões de crédito, o aumento é ainda maior, de 80% nos 12 meses fechados em maio.
Ou seja, os brasileiros endividados estão procurando renegociar suas dívidas e/ou conseguir crédito para pagar o que devem. Obviamente que isso é parte da solução, mas uma população muito endividada não é bom negócio para ninguém (cidadãos, bancos e governo).
O endividamento excessivo não é bom por uma razão óbvia: a incerteza quanto à inadimplência faz subir os juros e o spread, ao mesmo tempo em que torna as instituições financeiras mais seletivas na hora de conceder empréstimos, o que restringe o crescimento econômico.
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Como se livrar do superendividamento?
Uma situação financeira grave carece de diferentes abordagens para ser solucionada, algumas delas práticas e do dia a dia que só dependem de você e outras em que você vai precisar de ajuda profissional. Algumas sugestões:
1. Pare de usar o cartão de crédito
De agora em diante, você precisa colocar em prática uma mudança importante: comprar, só se puder pagar à vista. Eu sei que parece muito mais fácil escrever (ler) do que fazer, mas é essencial que você pare de “alimentar o monstro”.
2. Não faça novos empréstimos
A mesma recomendação dada em relação ao cartão de crédito vale para o crédito pessoal e outras formas de financiamento. Você precisa parar de “esticar a corda” simplesmente evitando novos empréstimos e acordos sem saber se, de fato, eles serão úteis para melhorar sua situação.
3. Comece agora mesmo o seu controle financeiro
Se você não sabe exatamente como gasta seu dinheiro nem quanto recebe de forma líquida, não vai ser capaz de impor e respeitar limites de gastos no seu orçamento familiar. Baixe nossa planilha gratuita de controle financeiro e comece agora mesmo a registrar suas receitas e despesas de um jeito organizado e frequente.
4. Acabe com o desperdício
Agora que você vai passar a controlar melhor seu dinheiro, vai ser capaz de perceber que há desperdício de recursos no seu dia a dia. Desde a conta de luz, que pode ser reduzida, até o reuso de água, passando por como você lida com os alimentos, o desperdício é algo que custa caro e que precisa acabar.
5. Use todo dinheiro extra para abater suas dívidas
Décimo terceiro salário, horas extras, aquele “bico” de fim de semana, todo dinheiro extra que você conseguir precisa ser usado para abater suas dívidas, diminuindo assim seu saldo devedor e, com ele, o impacto financeiro das dívidas no seu dia a dia.
6. Venda o que puder para fazer caixa e abater suas dívidas
O objetivo é levantar dinheiro e sair do endividamento, certo? Pois bem, além de usar todo o dinheiro extra que puder (item anterior), você também deve se desfazer de bens e coisas que não usa e que podem dar uma força na redução das dívidas.
Carro, moto, móveis, roupas, desapegue, saia do endividamento e depois, quando as coisas estiverem mais “normais”, você compra de novo se for o caso.
7. Procure ajuda
Este é o item mais importante, mas deve ser acompanhado de todos os demais. Abra o jogo com a família e, juntos, procurem ajuda. Uma ida ao Procon de sua cidade com todas as dívidas em mãos é importante para entender quais são seus direitos e como você pode renegociá-las de forma inteligente.
Além disso, você também deve procurar ajuda de um advogado especializado, que será capaz de orientá-lo quanto aos aspectos legais da sua situação e se há algo que você possa pleitear na justiça para amenizar/encerrar suas dívidas. Um consultor financeiro também pode ser útil para ajudar você a construir um plano de controle financeiro.
O superendividamento e o projeto de lei 3515/15
Desde 2015, existe um projeto de lei (PL) que andou a passos muito lentos na Câmara dos Deputados, mas que ganhou um pouco mais de interesse a partir de 2019 e, principalmente, em 2020 por conta da pandemia e seu efeito nas finanças de milhões de brasileiros.
O PL 3515/15 tem como objetivo ajudar a prevenir o superendividamento, determinando condições para as instituições financeiras oferecerem crédito, bem como diretrizes e direitos para o tratamento do brasileiro superendividado.
Do lado da prevenção, por exemplo, o projeto estabelece que é um direito básico do consumidor a garantia de crédito responsável e a preservação do mínimo existencial, como moradia e alimentação.
Além disso, o PL 3515/15 proíbe publicidade enganosa envolvendo empréstimos financiamentos. Termos “sem juros”, “taxa zero” e afins seriam proibidos por serem falaciosos em termos financeiros. Insistir em ligações telefônicas ou e-mail para vender também não será mais permitido.
De acordo com o PL, as instituições financeiras terão de informar com antecedência e de forma muito transparente e compreensível todos os custos envolvidos no empréstimo, desde taxas de juros, encargos a total de parcelas e validade da oferta.
O atual percentual limite exigido para o consumidor aderir ao crédito consignado passaria de 35% para 30% da renda como máximo comprometido, com direito a 7 dias de prazo para voltar atrás (período conhecido como “semana de arrependimento”).
O ponto mais interessante considerando a pessoa física do superendividado é a possibilidade de uma conciliação extrajudicial, em outras palavras uma espécie de recuperação judicial como a que existe para empresas, mas aqui pensada na pessoa.
A falência pessoal é um tema previsto em diversos países, existindo por exemplo desde 1978 na França e há décadas também nos EUA, Israel e outros países. O PL 3515/15 tem claras inspirações no modelo francês e é defendido por diversas empresas e entidades: Serasa, SPC Brasil, Proteste, Procon, Ministério Público, OAB, Defensoria Pública já emitiram notas em favor de sua aprovação urgente.
Conclusão
O superendividamento é uma situação crítica de dívidas que não acontece “da noite para o dia”. Trata-se, é preciso reconhecer, de um reflexo triste de uma série de comportamentos. É bem verdade que toda uma realidade pode ser completamente revirada por conta de emergências e imprevistos, mas isso não é a regra.
Para lidar com o endividamento de risco devemos, antes de tudo, abraçar efusiva e amistosamente a educação financeira. É preciso gostar do próprio dinheiro e fazer dele um motivo de orgulho para a família. Educação financeira é mais do que controlar o dinheiro, é ser um exemplo de cidadania para todos aqueles que amamos de verdade.
Além disso, é essencial assumir a responsabilidade pela situação e mudar o comportamento de forma definitiva. Controle financeiro, não comprar usando o crédito, ajuda profissional de advogados, consultoria financeira são parte da solução. Em breve, tudo indica que teremos a possibilidade de decretar falência pessoal.
Tenha em mente que vivemos em um país cujos juros bancários ao consumidor são elevadíssimos. Evite ao máximo dívidas longas e a comodidade das modalidades de crédito mais acessíveis. É um bom começo para evitar o que descrevemos hoje neste texto.
Foto: Pixabay.